“Quando a infância se olha no espelho do algoritmo, ela envelhece mais rápido.” A frase do psicólogo Douglas Coutinho, especialista em neuropsicologia e comportamento infantil, resume um fenômeno que preocupa médicos e pais: o aumento do número de meninas que, antes dos 12 anos, já seguem rotinas de skincare, usam maquiagem e se sentem pressionadas a parecer “perfeitas” — reflexo direto da influência das redes sociais.
De acordo com o Comitê Gestor da Internet no Brasil, 93% das crianças e dos adolescentes de 9 a 17 anos já acessam a internet, e sete em cada 10 têm perfil ativo nas redes. Entre vídeos de tutoriais, desafios de “beleza natural” e influenciadoras mirins, a infância se vê mergulhada em um universo de filtros, likes e comparações.
Segundo Coutinho, a exposição precoce à estética digital faz com que crianças “aprendam a pentear o ego antes mesmo de pentear o cabelo”. Ele explica que o cérebro infantil, ainda em amadurecimento, está sendo bombardeado por estímulos que antecipam a maturação emocional. “A criança passa a associar aparência com aceitação. É um espelho social que nunca desliga.”
Essa influência não vem só do TikTok e do Instagram. Vídeos aparentemente inofensivos, com meninas mostrando rotinas de skincare noturno ou testando cremes e séruns, criam uma cultura de pertencimento estético. “O feed funciona como uma vitrine infinita em que influenciadores mirins demonstram produtos passo a passo. A criança internaliza esse ritual como uma brincadeira normal — e replica”, completa.
O problema é que o brincar está sendo substituído pela cobrança. “Quando a maquiagem vira armadura e o espelho, tribunal, a brincadeira já virou sintoma”, alerta o psicólogo.
Quando o cuidado vira risco
A dermatologista Natasha Crepaldi confirma a preocupação. “A pele de uma criança não é uma pele adulta em miniatura. Ela é mais fina, sensível e tem o pH diferente. O uso de cosméticos inadequados desequilibra a barreira cutânea e causa irritações, dermatites, ressecamento e até queimaduras químicas.” De acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, o mercado de produtos infantis movimenta cerca de R$ 3,9 bilhões por ano no país — e cresceu mais de 40% em seis anos.
A médica relata um aumento expressivo de pacientes com reações a produtos vistos em redes sociais. “Muitas meninas de 9, 10 anos chegam com manchas, descamação e queimações leves por causa de ácidos e esfoliantes. Esses ativos — como retinol, glicólico e niacinamida — são totalmente desnecessários e perigosos nessa idade.” Segundo Crepaldi, o essencial para uma pele infantil saudável é a simplicidade: sabão suave, hidratante leve e protetor solar diário. “Todo o resto é excesso. E excesso é agressão”, reforça.
Brincar também exige limites
O alerta vale também para os kits de maquiagem infantil, cada vez mais populares como presente no Dia das Crianças. A dermatologista Ana Carolina Sumam explica que, no Brasil, esses produtos são tratados como brinquedos e, portanto, muitas vezes não passam por controle rigoroso da Anvisa. “O fato de serem coloridos e vendidos para crianças não garante que sejam seguros. Alguns contêm metais pesados, corantes artificiais e fragrâncias fortes.”
Mesmo as versões hipoalergênicas podem causar reações, já que o termo não é regulado. “O ideal é evitar maquiagem em pó, glitters, delineadores líquidos e batons com pigmentação intensa. Esses itens podem irritar olhos, vias respiratórias e até causar intoxicação se forem ingeridos.”
Para uso recreativo, ela recomenda supervisão constante e escolha de produtos certificados. “A maquiagem pode ser parte da brincadeira, mas precisa ser tratada como tal — um momento lúdico, não um ritual diário de aparência.”
Para a psicóloga Izabelle Santos, do Hospital Anchieta, o problema não é o interesse em si, mas o motivo que o move. “Brincar de se maquiar faz parte da imitação dos adultos, que é natural na infância. O perigo aparece quando a criança começa a se sentir feia sem esses recursos, ou quando passa a usar isso como forma de aceitação.”
Ela chama isso de adultização precoce — quando o brincar é substituído pela necessidade de corresponder a padrões. “Essas meninas começam a se avaliar com base no que veem on-line. Se não parecem com a influenciadora, sentem-se inadequadas. Isso traz ansiedade, autocrítica e perda de espontaneidade.”
Segundo ela, há sinais de alerta que pais precisam observar: “Quando o uso de maquiagem vira rotina diária, quando há choro por não ter um produto específico, ou quando a criança se recusa a sair sem ‘parecer bonita’. Nesse ponto, o lúdico foi substituído pela angústia.”
Coutinho reforça que proibir totalmente pode ser tão danoso quanto permitir sem limites. “Entre a censura e a permissividade, o papel dos pais é ser bússola.” A recomendação é construir senso crítico: explicar o que são filtros, conversar sobre corpos reais e ensinar que autocuidado não é vaidade, mas respeito ao próprio corpo. “A família deve reforçar o valor do ser, não do parecer”, afirma.
Fonte: Correio Braziliense